"Pensamentos valem e vivem pela observação exata ou nova, pela reflexão aguda ou profunda; não menos querem a originalidade, a simplicidade e a graça do dizer."

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O Dilúvio

Do sol ao raio esplêndido,
Fecundo, abençoado,
A terra exausta e úmida
Surge, revive já;
Que a morte inteira e rápida
Dos filhos do pecado
Pôs termo à imensa cólera
Do imenso Jeová!

Que mar não foi! que túmidas
As águas não rolavam!
Montanhas e planícies
Tudo tornou-se mar;
E nesta cena lúgubre
Os gritos que soavam
Era um clamor uníssono
Que a terra ia acabar.

Em vão, ó pai atônito,
Ao seio o filho estreitas;
Filhos, esposos, míseros,
Em vão tentais fugir!
Que as águas do dilúvio
Crescidas e refeitas,
Vão da planície aos píncaros
Subir, subir, subir!

Só, como a idéia única
De um mundo que se acaba,
Erma, boiava intrépida,
A arca de Noé;
Pura das velhas nódoas
De tudo o que desaba,
Leva no seio incólumes
A virgindade e a fé.

Lá vai! Que um vento alígero,
Entre os contrários ventos,
Ao lenho calmo e impávido
Abre caminho além . . .
Lá vai! Em torno angústias,
Clamores, lamentos;
Dentro a esperança, os cânticos,
A calma, a paz e o bem.

Cheio de amor, solícito,
O olhar da divindade,
Vela aos escapos náufragos
Da imensa aluvião.
Assim, por sobre o túmulo
Da extinta humanidade
Salva-se um berço; o vínculo
Da nova creação.

Íris, da paz o núncio,
O núncio do concerto,
Riso do Eterno em júbilo,
Nuvens do céu rasgou;
E a pomba, a pomba mística,
Volando ao lenho aberto,
Do arbusto da planície
Um ramo despencou.

Ao sol e às brisas tépidas
Respira a terra um hausto,
Viçam de novo as árvores,
Brota de novo a flor;
E ao som de nossos cânticos,
Ao fumo do holocausto
Desaparece a cólera
Do rosto do Senhor.

Machado de Assis (1863)

Círculo vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:
"Quem me dera que eu fosse aquela loira estrela
Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

"Pudesse eu copiar-te o transparente lume,
Que, da grega coluna à gótica janela,
Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela"
Mas a lua, fitando o sol com azedume:

"Mísera! Tivesse eu aquela enorme, aquela
Claridade imortal, que toda a luz resume"!
Mas o sol, inclinando a rútila capela:

Pesa-me esta brilhante auréola de nume...
Enfara-me esta luz e desmedida umbela...
Por que não nasci eu um simples vagalume?"...

Machado de Assis

Relíquia íntima

Ilustríssimo, caro e velho amigo,
Saberás que, por um motivo urgente,
Na quinta-feira, nove do corrente,
Preciso muito de falar contigo.

E aproveitando o portador te digo,
Que nessa ocasião terás presente,
A esperada gravura de patente
Em que o Dante regressa do Inimigo.

Manda-me pois dizer pelo bombeiro
Se às três e meia te acharás postado
Junto à porta do Garnier livreiro:

Senão, escolhe outro lugar azado;
Mas dá logo a resposta ao mensageiro,
E continua a crer no teu Machado.

Machado de Assis

Horas Vivas

Noite: abrem-se as flores . . .
Que esplendores!
Cíntia sonha seus amores
Pelo céu.
Tênues as neblinas
Às campinas
Descem das colinas,
Como um véu.

Mãos em mãos travadas,
Animadas,
Vão aquelas fadas
Pelo ar;
Soltos os cabelos,
Em novelos,
Puros, louros, belos,
A voar.

— "Homem, nos teus dias
Que agonias,
Sonhos, utopias,
Ambições;
Vivas e fagueiras,
As primeiras,
Como as derradeiras
Ilusões!

— "Quantas, quantas vidas
Vão perdidas,
Pombas mal feridas
Pelo mal!
Anos após anos,
Tão insanos,
Vêm os desenganos
Afinal.

— "Dorme: se os pesares
Repousares,
Vês? — por estes ares
Vamos rir;
Mortas, não; festivas,
E lascivas,
Somos — horas vivas
De dormir. —"

Machado de Assis

Carolina

Querida, ao pé do leito derradeiro
Em que descansas dessa longa vida,
Aqui venho e virei, pobre querida,
Trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
Que, a despeito de toda a humana lida,
Fez a nossa existência apetecida
E num recanto pôs o mundo inteiro.

Trago-te flores - restos arrancados
Da terra que nos viu passar unidos
E ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos malferidos
Pensamentos de vida formulados,
São pensamentos idos e vividos.

Machado de Assis, 1906

Bons Amigos

Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir.
Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende.
Amigo a gente sente!

Benditos os que sofrem por amigos, os que falam com o olhar.
Porque amigo não se cala, não questiona, nem se rende.
Amigo a gente entende!

Benditos os que guardam amigos, os que entregam o ombro pra chorar.
Porque amigo sofre e chora.
Amigo não tem hora pra consolar!

Benditos sejam os amigos que acreditam na tua verdade ou te apontam a realidade.
Porque amigo é a direção.
Amigo é a base quando falta o chão!

Benditos sejam todos os amigos de raízes, verdadeiros.
Porque amigos são herdeiros da real sagacidade.
Ter amigos é a melhor cumplicidade!

Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinho,
Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!

Machado de Assis

As mulheres do topo da Árvore

As Melhores Mulheres pertencem aos homens mais atrevidos. Mulheres são como maçãs em árvores. As melhores estão no topo. Os homens não querem alcançar essas boas, porque eles têm medo de cair e se machucar. Preferem pegar as maçãs podres que ficam no chão, que não são boas como as do topo, mas são fáceis de se conseguir. Assim, as maçãs no topo pensam que algo está errado com elas, quando na verdade, ELES estão errados... Elas têm que esperar um pouco mais para o homem certo chegar... aquele que é valente o bastante para escalar até o topo da árvore.
Machado de Assis

Curiosidades

  • Pesquisando sobre Machado de Assis, encontrei um site que comenta que ele tinha uma caligrafia tão ruim que alguns revisores se recusavam a trabalhar com ele, inclusive uma vez ele foi chamado para decifrar o que escreveu e ele mesmo não conseguiu ler.
  • Em homenagem ao centenário da morte de Machado de Assis , chega as livrarias neste mês um curioso guia, o almanaque Machado de Assis de Luiz Antônio Aguiar. O Almanaque tem de tudo um pouco, inclui breve biografia, um extenso varejo de curiosidades, coletânea de frases, aleém de trechos selecionados. No final, apresenta um roteiro para quem quiser continuar a "viagem" de Machado.
  • Ele era bastante recluso, tinha um grande zelo por sua privacidade e não se sabe muito de sua vida. Há ainda o que ser revelado. Não se sabe, por exemplo, como ele apareceu com 17 anos sabendo francês e inglês.
  • Era miope(Estado em que o indivíduo vê melhor de perto do que ao longe), gago e sofria de epilepsia(Perturbação do ritmo cerebral, caracterizada por crises em que se observam perda súbita da consciência e convulsões).
  • Enquanto escrevia Memórias Póstumas de Brás Cubas, foi acometido por uma de suas piores crises intestinais, com complicações para sua frágil visão. Os médicos recomendaram três meses de descanso em Petrópolis. Sem poder ler nem redigir, ditou grande parte do romance para a esposa, Carolina.
  • Ele é nosso 'Pelé' da literatura! Um cara humilde, que tinha tudo para não dar certo e conseguiu a glória. Não riqueza, mas imortaildade e respeito, graças à literatura
  • No Arquivo Nacional, a certidão de óbito o traz registrado como de "cor branca", mesmo sendo sua mulatice ou mestiçagem já conhecida.
  • No inventário, o seu nome vem mencionado algumas vezes erroneamente como José (sic) Maria Machado de Assis, talvez pelo fato de ele escrever e assinar abreviadamente J. M. Machado de Assis.
  • O crítico norte-americano Harold Bloom considera Machado de Assis um dos 100 maiores gênios da literatura de todos os tempos (chegando ao ponto de considerá-lo o melhor escritor negro da literatura ocidental).
  • O estilo literário de Machado de Assis tem inspirado muitos escritores brasileiros ao longo do tempo e sua obra tem sido adaptada para a televisão, o teatro e o cinema.
  • Suas principais obras foram traduzidas para diversos idiomas.
  • Machado de Assis foi um exímio jogador de xadrez, tendo formulado problemas enxadrísticos para diversos periódicos e mesmo participado do primeiro campeonato disputado no Brasil. Em muitas de suas obras, faz menções ao jogo, como por exemplo, em Iaiá Garcia.
  • Foi caixeiro, guarda-livros e aprendiz de tipógrafo.
  • Machado de Assis já foi retratado como personagem no cinema, interpretado por Jaime Santos no filme "Vendaval Maravilhoso" (1949) e Ludy Montes Claros no filme "Brasília 18%" (2006). Também teve sua efígie impressa nas notas de NCz$ 1,00 (um cruzado novo; até 1989, com valor de mil cruzados) de 1987.
  • Uma curiosidade do livro "Esaú e Jacó" é que Machado de Assis não se coloca como autor da obra. Logo em seu início, há uma advertência onde diz que os manuscritos que deram origem ao livro foram encontrados após a morte do Conselheiro Aires. Machado, então, monta a sua narrativa a partir dos manuscritos do Conselheiro.
  • Aos 30 anos, casou-se com a irmã do poeta Faustino Xavier de Novais, Carolina, contra a vontade da família dela. Morou com Carolina até ela morrer, em 1904. Nos 4 anos seguintes, Machado guardou os tapetes tecidos pela mulher para que ninguém mais pisasse neles, os fios de cabelo que ficaram na escova e o sabonete que ela usava.
  • Numa festa, uma senhora abordou o escritor Machado de Assis e comentou: "Tinham-me dito que o senhor é gago e vejo que não é tanto". Replicou ele: "Pois tinham-me dito que a senhora era estúpida e vejo também que não é tanto".